A China passou de fábrica do mundo a protagonista na corrida por inovação tecnológica. A mudança, segundo o economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, Paulo Gala, se dá não apenas pela inovação em si, mas pela capacidade de produzi-la internamente. “O que desenvolve um país de verdade não é usar tecnologia, é produzir. Quem produz tecnologia consegue pagar salários mais altos, ter margens maiores e empregar engenharia sofisticada,” afirmou.
Com forte presença estatal, estímulos diretos ao setor privado e avanços em energia, carros elétricos e inteligência artificial, a China já rivaliza com os Estados Unidos em áreas estratégicas da nova economia digital. Esse modelo é baseado em uma articulação estratégica entre Estado e mercado, que permitiu ao país escalar inovações com rapidez.
Para o economista, a China conseguiu transformar inovação em um projeto econômico de longo prazo. “O governo chinês promoveu estímulos diretos à iniciativa privada, direcionou os empresários e fez investimentos em inovação para limpar o planeta.” Esse movimento representa uma virada histórica na geopolítica global. “Pela primeira vez, os Estados Unidos estão sendo enfrentados por alguém à altura.”
Nos últimos anos, o governo chinês ampliou os investimentos em fontes renováveis, construiu usinas e passou a dominar tecnologias como painéis solares e baterias de lítio. “Eles realmente estão investindo há três décadas nisso. Estão com uma geração monumental de energia e se movendo rapidamente com um sistema eletrificado”, observa Gala. “Em algumas cidades chinesas, nem existe mais carro a combustão. Os ônibus, os táxis, os carros, são todos elétricos.”
Corrida por IA e a demanda energética global
A infraestrutura energética, muitas vezes ignorada nos debates sobre tecnologia, aparece como uma das bases dessa transformação. Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), a China já ultrapassou os Estados Unidos em geração elétrica. Hoje, sua demanda anual é de 10.498 TWh, mais que o dobro do consumo americano, de 4.475 TWh. Gala destaca que, com essa capacidade, o país não apenas sustenta seu avanço industrial, como também disputa a liderança em inovação. “A China já produz quatro vezes mais energia elétrica que os EUA, e tem uma indústria com o dobro do tamanho da americana. Em várias áreas, a China já disputa com os Estados Unidos a fronteira tecnológica, a fronteira do conhecimento,” afirma.
Segundo dados da IEA, desde 2020, a demanda de energia da China cresce mais rápido do que a própria economia. O crescimento é impulsionado por fatores como a expansão da indústria de tecnologias de energia limpa, o aumento da posse de condicionadores de ar, a maior penetração de veículos elétricos e a rápida disseminação de data centers e da infraestrutura 5G. Atualmente, cerca de 60% da eletricidade consumida na China vai para a indústria, proporção muito superior à média de 32% nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entre 2022 e 2024, quase metade (48%) do aumento no consumo elétrico chinês veio do setor industrial.
Esse cenário ganha ainda mais relevância com o avanço da inteligência artificial. O crescimento da IA tem deslocado o foco da disputa tecnológica para a infraestrutura que a sustenta. A questão já não é apenas quem lidera em algoritmos ou aplicações, mas quem terá energia suficiente para manter o ritmo de crescimento dessas ferramentas, usadas por bilhões de pessoas diariamente. Além da eletricidade, essas tecnologias demandam grandes volumes de água para resfriar servidores.
Enquanto laboratórios dos Estados Unidos alertam para os riscos de escassez de energia até 2026, a China opera datacenters dedicados à IA com um suprimento elétrico compatível com a demanda digital em expansão. “A inteligência artificial exige muita energia. Os data centers, que são as fábricas do futuro, demandam uma quantidade absurda de energia. E os países que não tiverem energia limpa, confiável e barata vão ficar para trás nessa corrida”, diz Gala.
Na visão do economista, a vantagem chinesa não se limita à escala. O país tem atuado para dominar também as estruturas mais sensíveis do setor tecnológico. “A China tem seu próprio sistema de GPS, o Baidu. São mais de 30, 40, 50 satélites lançados por foguetes chineses, com uma rede de transmissão de dados também chinesa.”
Mesmo a dependência de chips avançados, considerada uma fragilidade do sistema tecnológico chinês, está sendo enfrentada com rapidez. “Desde que os Estados Unidos impuseram sanções, cortando o fornecimento da TSMC e da ASML, a China começou a investir fortemente no desenvolvimento de microchips ultrapequenos.”
Essa movimentação ganhou ainda mais destaque com o crescimento da inteligência artificial. “A China chocou o mundo. Quando começaram a surgir as IAs chinesas, como o DeepSeek, foi um baque para o Ocidente perceber que essas ferramentas eram tão boas quanto as americanas, e bem mais baratas.”
Questionado sobre o que o Brasil pode aprender com o modelo chinês, Gala defende uma maior articulação entre Estado e mercado. “O modelo chinês mostra como é importante essa interação entre Estado e empresas.” E completa: “Não se trata de estatizar tudo, nem de deixar tudo para o setor privado. É como fazer uma limonada: precisa da dose certa de água e de limão. A China é um belo exemplo disso.”
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