A ascensão da China como potência global desperta interesse e questionamentos sobre os fundamentos que sustentam seu modelo de governança. Em China: Tradição e Modernidade na Governança do País, Evandro Menezes de Carvalho, professor de Direito Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), examina as bases históricas, culturais e políticas que moldaram o desenvolvimento chinês e sua influência no cenário internacional. “A China foi forçada a se reinventar em meio às crises, combinando pragmatismo econômico e centralização política para garantir seu crescimento”, explica.
O livro parte de um panorama histórico que remonta ao período em que a China era um dos principais centros econômicos do mundo, com 34,6% do PIB global até o século XIX. No entanto, as Guerras do Ópio e os tratados desiguais impostos pelas potências ocidentais comprometeram a soberania do país, enfraquecendo a sua economia e a sua estrutura política. A dinastia Qing, já fragilizada, não conseguiu acompanhar o avanço das potências industriais, e, em 1912, o império chegou ao fim. O século seguinte foi marcado por conflitos internos, invasões estrangeiras e crises políticas que retardaram o desenvolvimento do país. Em 1978, a China representava apenas 4,9% do PIB mundial.
Segundo Carvalho, a ascensão chinesa nas últimas décadas foi resultado de um processo de transformação que combinou a reinterpretação do passado com uma adaptação pragmática à exigência da modernização. O conceito de “socialismo com características chinesas” é um dos eixos centrais do livro. Carvalho explica que a China passou de um sistema socialista influenciado pela União Soviética para um modelo de governança próprio, no qual o socialismo se adapta às particularidades chinesas. “O Partido busca manter a comunicação com a sociedade, pois isso é essencial a longo prazo. A cada sessão da Assembleia Popular Nacional, são definidas metas que depois são divulgadas. O sistema não é fechado, as decisões são publicadas nos jornais chineses, permitindo que a população cobre sua implementação.”
O Partido Comunista Chinês (PCCh) manteve o controle do Estado, mas incorporou elementos de mercado, abrindo a economia e promovendo reformas que geraram o crescimento. Como destaca o professor, essa mudança não foi abrupta, mas construída gradualmente, respeitando a realidade do país. “A China não melhorou um modelo externo, mas construiu seu próprio caminho, equilibrando tradição e inovação”, observa.
Outro ponto abordado no livro é a relação entre valores históricos e desenvolvimento econômico. Carvalho analisa como princípios confucionistas, a hierarquia e a moralidade estatal, ainda influencia a governança chinesa. “A sociedade chinesa é estruturada em uma rede de relações, onde o indivíduo ocupa o centro, mas dentro de um conjunto de conexões. A família e os círculos próximos têm um papel fundamental, e compreender essa dinâmica é essencial para entender a sociedade chinesa. Esse modelo explica o conceito de guanxi, como descrito por autores como Fei Xiaotong, que já na década de 1940 analisavam essas estruturas e suas influências na modernidade”, explica.
A noção de “Estado-família” é um exemplo disso: o governo não é apenas uma entidade administrativa, mas também uma estrutura de proteção à sociedade, na qual a estabilidade e a unidade são prioridades. Essa visão reflete-se no próprio sistema político, onde Executivo, Legislativo e Judiciário não atuam como poderes independentes, mas como partes interligadas de um mesmo projeto de Estado.
O autor também discute como a Guerra Fria e a construção de estereótipos sobre a China influenciaram a percepção do país ocidental. Durante décadas, uma narrativa dominante oscilou entre a ideia de um país exótico e a de uma ameaça ideológica. Segundo Carvalho, essa visão simplificada desconsidera as múltiplas “Chinas” que coexistem dentro do território e a complexidade de sua trajetória histórica. “O socialismo na China passou por um processo de sinicização. Uma noção de governança chinesa não é apenas institucional, mas reflete a sabedoria de um povo que historicamente se adapta a novos desafios”, explica.
No contexto atual, a ascensão chinesa como potência global reacende debates sobre sua trajetória e influência. Em entrevista ao China2Brazil, Carvalho ressalta que o avanço da China não foi um aspecto espontâneo, mas uma resposta estratégica aos desafios históricos e às pressões externas. Essa capacidade de adaptação permitiu ao país superar um período em que precisou importar até os mesmos pregos, em 1947, para se tornar a segunda maior economia do mundo.
O livro traz reflexões que ajudam a compreender o momento atual, a relação entre tradição e inovação, a estrutura política e a forma como a China se posiciona no cenário internacional. “Muitos não querem entender a governança da China por se tratar de um país comunista, mas o sistema é mais complexo do que isso. O marxismo-leninismo é relevante para o Partido, que tem 100 milhões de membros, mas sua importância para os outros 1,3 bilhões de chineses é questionável. Para a sociedade, o que pesa mais é a cultura, a tradição e a forma chinesa de organização, que em alguns pontos se alinha ao marxismo, mas vai além dele,” explica. Ao conectar passado e presente, China: Tradição e Modernidade na Governança do País apresenta uma leitura aprofundada sobre os mecanismos que sustentam o desenvolvimento chinês e seus efeitos globais.
Crédito: Daiane Mendes